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Texto de  Gabriel San Martin para a exposição Porta da saída / Marinalva Rosa – AM Galeria, 2025

Gabriel San Martin1

 

 Ao partirem de um esboço, os passos seguintes de Marinalva Rosa consistem em fragilizar cada degrau anterior. Não sem razão, o tom figurativo dos trabalhos se alimenta da exaustão de referências claras. São planos que exercitam a maleabilidade de qualquer rigidez, de modo que se alastram pela maior parte das pinturas tampando e se flexibilizando uns aos outros como se afirmassem a dependência de cada elemento enquanto sujeito à formação do restante. Repetidamente alternadas e reconfiguradas as diretrizes para a disposição dos limites de cada coisa no plano, um componente só se faz finalizado à medida em que a pintura inteira está completa. Mesmo nos casos em que esse encobrimento se dá mais sutilmente, os campos modulam a sua fisionomia interna à revelia do restante nessa mesma interdependência entre um elemento e outro por meio não de sobreposições, mas de infindáveis adaptações e clivagens da sua forma à expansão ou contensão do restante – como se um campo empurrasse o outro na tônica de certa desorganização ostensiva. E, se uma coisa se forma somente a partir do todo, sugerir que algo veio “antes” ou “depois” se transforma quase que em um vício de linguagem. Não há “antes” e “depois” dado que os elementos, na verdade, vivem uma definição incerta até que estejam todos finalizados. Afirmar a finalização de uma figura é dizer que o trabalho está pronto. A aparência inicialmente jovial ensaiada pelas pinturas de Marinalva é, na verdade, enevoada pela extensa reiteração de incertezas que as envolve. Como que sedimentadas pela intangibilidade de qualquer solidez das definições sobre o que foi ou será, as distâncias temporais caducam e os trabalhos tropeçam em certa dissolução liquefeita das formas prometidas pelos seus planos iniciais – garantindo, então, uma maleabilidade completa ao esboço das composições. Se a maior parte dos componentes direciona o olhar para baixo, cima, esquerda ou direita em cada trabalho, a regra é dois ou três elementos escaparem à equação. O conjunto, afinal, parece familiarizado com o descompromisso do futuro quanto às expectativas do presente tanto quanto à lógica movediça que engole um passado pretensamente resolvido. Arremessadas às próprias conduções, as formas enferrujam a estabilidade das suas localizações e habitam, com isso, um mundo de contingências inalienáveis. Seja pela contração gravitacional ou pela elasticidade dinâmica que exercitam, a cor viola existências estanques ou qualquer morosidade atrelada à extensão de um recorte temporal dilatado sobre o outro. A ideia de intervalo é aqui, no fundo, uma utopia rouca. Feito um amalgama, as formas são edificadas sob a égide de um presente que, durando até o fim da 1 O texto, apesar de escrito a duas mãos, deu-se todo – até na escolha do título – na esteira de trocas

1 O texto, apesar de escrito a duas mãos, deu-se todo – até na escolha do título – na esteira de trocas tecidas entre encontros, ligações e mensagens com Rodrigo Naves, ao qual, por razões das mais diversas, eu não poderia ser mais grato.

 

ladeira, não dura nada. Resta, por bem e por mal, o aqui e o agora na busca de uma janela que se abre nela mesma. Ao emular a sugestão de ausência enquanto recurso mediado pelo uso de um branco semelhante ao da tela vazia ou de um espaço não preenchido, os trabalhos erguem uma integração capilar entre os componentes descumpridos e as projeções ansiadas. O esboço – que, no caso da pintura, costuma a ser o esqueleto que direciona o percurso da cor – sofre aqui uma tensão por lacunas que funcionam como manobras preenchedoras. Garantindo aos planos preliminares sentidos avessos, são evitadas sugestões de espera ou da lógica de um preenchimento do molde que se adia: rascunhos parecem feitos para serem remodelados na medida em que a pintura acontece. E, com isso, reiteram um aspecto de preenchimento por meio da ausência ou de expectativas, já de início, suscetíveis à reconfiguração e ao descumprimento do figurino. Como que evaporadas as ânsias homéricas de uma grandiosidade pela frente, os trabalhos encontram no desencanto a sua redenção. O fato é que a diluição de um evento e a passagem para outro permite uma formação entre passos curtos e apressados da qual sobra uma indefinição do desenho que se transforma em generosidade, bem como o curso errante dos planos se engrandece a acerto. A espécie de desajuste inquieto que orienta o preenchimento abraça uma geometria que, ansiosa por ordenar, termina encravada na própria desorientação. O esgotamento do apetite inflamado de uma noite de amor ou da ardência de uma vontade frustrada se tornam, no fundo, a verdadeira ressaca do amadurecimento na sua justa medida. Mas a crença num voo sóbrio em que se entalham essas pinturas é, enfim, o vértice da sensibilidade cotidiana e modesta pela qual Marinalva parece ensolarada.

 

Calculadamente acidentais, as configurações só tomam sentido ou clareza quando o chão lhes escapa aos pés. Pintar é aqui uma busca radical por se perder. Mas o que encaminha o conjunto à infalibilidade dos planos que segue é mesmo a ausência de um ponto de partida, a tomada do tropeço enquanto premissa. Sem coordenada, a realidade se dá conta do próximo passo quando o movimento das pernas já se faz sentido, levando cor e desenho a firmarem, na sua maleabilidade descalibrada, uma indefinição derretida que lança os trabalhos ao agora nas possibilidades mais indefinidas. Seja pela moleza dos troncos que sustentam as árvores ou no vacilo de cada sombra na relação com o corpo opaco que lhe consente existência, concretude vira sinônimo de mistério e as pinceladas engasgam com um amanhã atropelado pelo veloz arrastar do acaso. A graça é que, nessa passagem de um para zero, perder o fio da meada é o que orquestra a tudo que seja resolvido na incerteza, de modo que a carência de sentido não encontre um horizonte desestimulado. Aliviadas com o turvo desenrolar que tomam, as pinturas reiteram, ao tom de uma lição goethiana, que “não se cumpre amanhã o que hoje não for feito, e nem um dia só perder se deve”. Agora, nas possibilidades e em tudo o que vem pela frente.

 

Texto do professor Marco Giannotti para a exposição "Reconstrução", 2017
Marinalva Rosa parece estar sempre reconstruindo e recobrindo suas pinturas. Certamente este processo veio de suas pequenas e delicadas colagens de papéis de parede onde os padrões cromáticos variados são sobrepostos com gestos que aludem a uma paisagem. Agora, com estas pinturas recentes, a experiência da colagem vai para a pintura, seu trabalho adquire uma maior presença estética sem perder a delicadeza anterior. Paradoxalmente, a variedade dos gestos cromáticos é encoberta por uma neblina branca. O ambiente torna-se assim mais urbano, como uma pintura mural sobre paredes sólidas."



Texto da Professora Ilana Seltzer Goldstein para a exposição "As Coisas Se Escoram Tortas¨,  Arte Londrina 5, 2017
O futuro da pintura, num mundo marcado por uma realidade virtual, e pela saturação de imagens, é discutido de duas formas diferentes. Marinalva Rosa se lança à força das cores e estampas, à materialidade do papel e da tinta, apegando-se no prazer formal e na busca estética, ao passo que ...e ... parecem sugerir que a pintura não goza mais de visibilidade, nem entre os artistas nem para o público."

 


Texto do professor Rubens Pontes para a exposição Biomorfias
Há algo de familiar nas pinturas de Marinalva Rosa.

Diante de sua produção, um despertar nos aproxima ao seu universo, tornando-nos íntimos e nos distancia em estranhamentos.

Instantes de curiosidade e surpresa se revelam e este revelar se faz aos poucos. Não há nada que se faça diretamente.

Os espaços que compõem a pintura são disfarçados, margeiam ou se encontram dentro da composição que é constituída de gestos, massas de tinta e manchas, que são depositórios de suas ações anunciando a cor. A cor, esta sim se insinua direta e despretensiosamente, em que disposta na superfície da tela, organiza este espaço, onde juntos, espaço e cor vibram luminosamente.

Independentemente de escolhas e em grande parte, os elementos que constituem sua pintura são autônomos, mais objetivos, coisas que são mais o que são e mais do que se pretendem ser. Propondo-nos um olhar heterogêneo sobre o que vemos e reconhecemos simbolicamente, seu imaginário abre um jogo sobre o que venha a ser e a representá-lo, redimensionando-nos o olhar.

Diante dos estados de percepção tentamos criar sentido ao que é composto de partes ou pedaços, buscando uma organização ativa dos elementos em uma tentativa de formar experiências coerentes.

Em sua proposta artística não há restrições, nem mesmo uma maneira programática, nem manipulações de signos culturais, nem serve de instrumento crítico que reflete culturas e posicionamentos éticos, há alusões diretas a pintura, uma pintura que cintila, que pareça mais rica e plena.

 


Bibliografia:
História da Psicologia Moderna - SCHULTZ, Duane P.; SCHULTZ, Sydney Ellen - 9ª edição - Editora Cengage Learning - São Paulo, 2009.
O impressionismo: reflexões e percepções, de Meyer Schapiro. Sãuloo Pa: Cosac & Naify, 2002

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